Ela – Crítica

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De Spike Jonze (EUA, 2013)

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Spike Jonze costuma trabalhar em seus filmes temas muito delicados, filosóficos e atuais. E faz isso geralmente muito bem. Em “Onde Vivem os Monstros”, Spike realizou a difícil missão de inspecionar a infância através dos olhos de uma criança. Em “Quero Ser John Malkovich” o diretor abusou da metalinguagem para mostrar toda a obsessão que temos em querer ser outra pessoa e o prazer de controlar todos ao nosso redor.

“Ela” não foge muito da estrutura dos filmes anteriores, mas oferece algo muito mais especial, seja para aqueles que não gostam de pensar após uma sessão de cinema, seja para os apaixonados e incorrigíveis apreciadores de uma boa história. Somos todos capazes de encontrar algo sobre nós mesmos em seus filmes, o que torna a existência de “Ela” tão impressionante na tela.

Desta vez contando com uma atuação sublime de Joaquin Phoenix (ator injustiçado pela academia e dono de muita regularidade em seus projetos) que dá o tom certo de carisma, autoindulgência, solidão e sofrimento ao protagonista da história, Theodore; Spike tem muito zelo pelo que filma e pelo que conta, apresentando-nos à uma Los Angeles muito modificada pela tecnologia, onde seus cidadãos convivem com profissões pouco convencionais e, por que não, curiosas. Você pagaria para alguém escrever uma carta manual e particular à pessoa querida?

Pois bem, isso é muito comum no futuro de “Ela” e Theodore as escreve muito bem, sendo reconhecido por seu talento de identificar o sentimento alheio e transpô-lo para o receptor da mensagem. Além do trabalho, ele divide seu tempo entre pornografia, chats de relacionamento e videogames. Também foge da responsabilidade de assinar os papéis de divórcio de seu primeiro e único amor: Catherine (Rooney Mara).

Nós acompanhamos Theodore por um emaranhado de situações corriqueiras na vida daqueles que tentam superar um amor perdido: a insônia, a reclusão, o silêncio de se estar sozinho e a morbidez social. É perturbador o modo como me senti ao enxergar-me no lugar de Theodore, assim como tantos outros espectadores da sessão fizeram. Não há como ficar imparcial perante aos temas universais propostos em “Ela”, seja no drama pessoal de Theodore ou ainda na alienação digital que exauriu a humanidade, ainda que sutilmente.

Somos então apresentados ao sistema operacional de Theodore que, seguindo uma lógica do monstro de Frankenstein, desenvolve suas emoções à partir das experiência vividas, evoluindo tanto psicológica quanto emocionalmente. Não demora muito para nos entrosarmos com Samantha, sua voz rouca e o mesmo carisma demonstrado por Theodore, que logo se deixa levar pela leveza do seu S.O.

Entre um encontro arranjado falho e a monotonia existencial de sempre, Theodore começa a se apoiar em Samantha, seu novo porto seguro, a quem reporta suas angústias humanas (sim, as máquinas também têm as suas próprias mágoas) e confidencia seu sofrimento, desacreditado de que um dia poderá ser feliz sem Catherine. Nós todos sabemos que o tempo resolverá o problema de Theodore, que sua dor é passageira e até previsível, mas nos sensibilizamos de forma tão natural por ele sem se perguntar o por quê. Quem nunca esteve imerso em uma situação tão pessoal e abissal, incapaz de raciocinar sem qualquer envolvimento sobre a própria dor? E quem nunca questionou os sentimentos exagerados de um amigo, por não entender o que ele sentia?

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Theodore se apaixona por Samantha no segundo ato do filme, onde temos a parte mais interessante e emocional do roteiro. O sexo virtual, o desejo por um corpo e todo o afeto cuidadosamente construído pelo sistema operacional é, no mínimo, curioso. Imagine se a Siri do seu iphone organizasse seus e-mails e, em questão de segundos, risse do conteúdo de alguns, chorasse pelo de outros e se emocionasse por você. É tentador, não?

Pode-se encontrar um pouco de “Blade Runner”, de Ridley Scott, em “Ela”. Não só por seu protagonista, Deckard, se apaixonar por uma replicante, Rachel, mas também pelo fato de Ridley deixar bem claro que o grau de perfeição alcançado pelos androides era tanto, que o slogan da empresa que os fabricava era “mais humano do que os humanos”. Samantha é tanto ou mais humana que muitos dos personagens reais de “Ela”, não por ser o contraponto do tristonho Theodore, mas por se espelhar em milhões de sensações e experiências de usuários e desenvolvedores.

Seria injusto e também inconveniente julgar um amor virtual quando este é tão convincente e honesto, como pouco visto no cinema. O fato de não existir um amor carnal, uma conexão física, não diminui em nada a força da ligação entre Samantha e Theodore. A tentativa forçada dessa “incorporação” gera um dos momentos mais bizarros e esdrúxulos do filme.

Com um visual sci-fi-retrô, cores indie-music e uma paleta opaca de filtros, “Ela” também é agradável aos olhos. Sua música, composta pelo Arcade Fire, também não passa despercebida. Esse conjunto aliado ao trabalho primoroso de roteiro e direção de Spike Jonze transformam a obra em um filme indispensável aos amantes do cinema.

“Mais humano do que os humanos”.

nota: 7,8/10